sábado, 16 de junio de 2012

Apocalipse zumbi: profecia autorrealizável?

Antônio Luiz M.C. Costa

Três crimes muito estranhos impressionaram o mundo na última semana de maio. No primeiro deles, dia 26, sábado, um negro nu, Rudy Eugene, de 31 anos, foi flagrado comendo o rosto de um mendigo branco, Ronald Poppo, de 65 anos em uma passarela de pedestres onde drogados e sem-teto se abrigam sobre a MacArthur Causeway, uma avenida movimentada de Miami.

O ataque, filmado por uma câmera de segurança no prédio vizinho do jornal The Miami Herald, durou 18 minutos. Eugene espancou Poppo até deixá-lo inconsciente, o despiu, arrancou-lhe um olho e começou a devorá-lo. Eugene, um lavador de carros com condenações por pequenos crimes, tinha abandonado seu carro na avenida a cinco quilômetros dali e caminhado por duas horas, jogando fora a carteira de motorista, a roupa e os sapatos pelo caminho. Viera da casa da namorada em Fort Lauderdale (a cerca de50 quilômetros dali) para assistir a um show de hip-hop em Miami Beach.

Alertado por um ciclista, um policial interveio e ordenou-lhe que se afastasse. “O homem que atacava se levantou com pedaços de carne na boca. Ele rosnava”, contou o policial. O agressor o ignorou e continuou a arrancar pedaços de carne da vítima com a boca O policial atirou, mas ele continuou mastigando. O policial atirou mais quatro vezes até matá-lo. Além do olho arrancado, a vítima teve três quartos do rosto devorados e está internadaem estado grave. Apolícia acredita que o agressor estava sob o efeito de alguma das drogas sintéticas conhecidas genericamente como “salt baths” (sais de banho), mas até agora nenhum exame toxicológico foi publicado.

Em 31 de maio, Alexander Kinyua, imigrante queniano de 21 anos que vivia nos EUA desde criança, estudante de engenharia elétrica na Universidade de Morgan, Maryland, confessou à polícia que comeu o coração e parte do cérebro de seu colega de quarto Kujoe Bonsafo Agyei-Kodie, imigrante ganês em situação irregular, de 37 anos e aluno de outra faculdade, desaparecido desde o dia 25. O irmão de Kinyua encontrara as mãos e parte da cabeça da vítima no porão de casa e avisara a polícia, que foi imediatamente à procura do jovem, brevemente detido uma semana antes por agredir um colega com um taco de beisebol e deixá-lo cego, sem motivo aparente.

No dia do assassinato, Kinyua postara frases estranhas no Facebook: “Ouçam-me, estudantes de faculdades negras, vocês são fortes o bastante para suportar sacrifícios humanos rituais em massa em todo o país e funcionarem como seres humanos? Tem sido trágico demais com o duplo tiroteio na Virginia Tech [caso de 2007, quando um estudante, imigrante sul-coreano, matou a tiros 32 outras pessoas e a si mesmo nessa faculdade] e outros assassinatos universitários. Agora, uma reviravolta: limpeza étnica é a política, estratégia e tática que afetará vocês, direta ou indiretamente, nos próximos meses. Esta é a base brutal, um método maligno e terrificante destes cultos mortais”.

Um terceiro caso, mais complicado, mas que envolve elementos semelhantes, foi o do canadense branco Luka Magnotta, de 29 anos, que postou na internet um filme dele mesmo matando, decapitando, esquartejando e violando o corpo de Jun Lin, estudante chinês homossexual de 33 anos, no que provavelmente seria um encontro sexual de ocasião. Foi em Montreal, no dia 24 ou 25 de maio. Comeu alguns pedaços da vítima e enviou outros às sedes de partidos canadenses. Fugiu para a Europa no dia 26, mas foi reconhecido e preso em Berlim, em 4 de junho, ao consultar longamente em um cibercafé as notícias sobre ele mesmo. Magnotta, que vivia de bicos, fez pequenos papéis heterossexuais e homossexuais em filmes pornôs (obscuros, apesar de ele se apresentar como “astro” do gênero), foi modelo e prostituto e uma vez foi preso ao se travestir como mulher (coisa fácil, dada sua aparência andrógina) para fazer compras com um cartão de crédito roubado e dizia ser apenas “gay por dinheiro”. Parece responder também por vídeos de tortura e morte de gatinhos divulgados na internet e por mensagens e um manifesto com seu nome em um foro neonazista, que expressavam ódio ao multiculturalismo em geral e a chineses e judeus em particular. Uma jornalista transexual que foi sua amante o descreve como obcecado por fama e inclinado a golpear a si mesmo: sugere um homem incapaz de suportar a si mesmo como homossexual e “fracassado”.

Os três casos envolvem provavelmente psicoses, associadas ou não ao uso de drogas, mas isso não esgota a questão. Há sentimentos de humilhação e frustração associados à condição de negro, de imigrante, de desempregado, de homossexual e uma reação na forma de violência grotesca e mesmo exibicionista, mesmo que seja contra pessoas em situação semelhante ou pior.

Além disso, ao menos nos dois primeiros casos é aparente a imitação, consciente ou inconsciente, do modelo ficcional do “zumbi”, cada vez mais popular no cinema, em games de computador e na literatura de terror.

Não se trata, entenda-se bem, do nzumbi da tradição quimbunda, um fantasma ou espírito imortal que vagueia a noite, sentido no qual foi apelidado o herói Zumbi de Palmares. Também não é o zumbi das crenças haitianas, cadáver reanimado por magia para servir de escravo a um feiticeiro vudu. A lenda foi popularizada pelo romance The Magic Island (A Ilha Mágica, de 1929) de William Seabrook e pelo filme White Zombie (Zumbi Branco, de 1932, com Bela Lugosi) de Victor Halperin.

O modelo do “zumbi” de que estamos falando aqui surgiu com Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, de 1968) de George Romero. O filme não usava a expressão “zumbi”, que lhe foi associada pelo público a partir de alguma semelhança na aparência com os “escravos mortos-vivos”, mas nenhuma no conceito: nesse filme, uma epidemia causada por “contaminação radioativa” trazida de Vênus por uma sonda interplanetária transforma pessoas normais em cadáveres animados canibais e assassinos, que tentam devorar amigos e parentes. A predileção por cérebros foi introduzida pela sequência trash de 1985, Return of the Living Dead (A Volta dos Mortos Vivos).

Romero citava como inspiração os quadrinhos do gibi de terror Tales from the Crypt, publicados de 1950 a 1955, mas as figuras que nele apareciam eram zumbis tradicionais mesclados com os ghouls ou carniçais do folclore árabe (gênios malignos canibais que assumem a forma de sua última vítima) para se tornarem semidecompostos cadáveres ambulantes que ameaçavam moças e aventureiros ingênuos, nunca uma epidemia. O precursor mais próximo é o filme de 1936 Things to Come (Daqui a Cem Anos), dirigido por William Cameron Menzies e com roteiro do escritor de ficção científica H. G. Wells. Nesse filme, os mortos-vivos são produto de uma guerra biológica imaginada 30 anos no futuro (ou seja, em 1966). A tentativa de curá-los é inútil e a única maneira de combater a epidemia é atirar nos contaminados.

Também se pode citar I Am Legend (no Brasil, Última Esperança sobre a Terra ou, nas edições recentes, Eu Sou a Lenda), romance de Richard Matheson de 1954, adaptado para o cinema três vezes, no qual a epidemia toma o mundo e o protagonista é o último sobrevivente. Mas nesse caso, os contaminados são “vampiros” (com medo de alho) racionais e inteligentes que reconstroem a sociedade e condenam o herói à morte como uma ameaça à nova ordem.

Em muitos filmes e textos desse subgênero, a epidemia torna-se mundial e o tema é a luta desesperada dos remanescentes da humanidade para sobreviver e não serem contaminados: é o “apocalipse zumbi”, que nada mais a ver com os zumbis africanos e haitianos. É um mito moderno, inventado pela ficção científica do século XX nas vésperas da II Guerra Mundial e que tomou sua forma atual durante a Guerra do Vietnã.

Os críticos geralmente interpretam o filme de Romero e suas sequências e imitações como uma alegoria da decadência da sociedade e seus valores, que descreve sobreviventes sitiados a desconfiarem um dos outros e brigarem constantemente entre si sobre como se defenderem, enquanto “zumbis” destroem casas bonitas, shoppings e outros símbolos de prosperidade.

A obsessão com esses “zumbis” se tornou ainda maior em fins dos anos 1990, com a popularização de jogos de computador como Resident Evil, Silent Hill, Dead Rising e similares e a retomada do tema na ficção literária de horror, notadamente The Zombie Survival Guide (O Guia de Sobrevivência a Zumbis, de 2003) de Max Brooks e Cell (Celular, de 2006) de Stephen King. E explodiu em 2009 – logo após a crise financeira de Wall Street – com a epidemia dos chamados mashups, obras clássicas deformadas pelo acréscimo de zumbis à trama, moda inaugurada pelo infame Pride and Prejudice and Zombies (Orgulho e Preconceito e Zumbis) de Seth Grahame-Smith e seguida por atentados similares a obras como A Guerra dos Mundos, Huckleberry Finn, O Mágico de Oz, Drácula e Alice no País das Maravilhas.

Ainda mais estranho, em 2011 o CDC (Centers for Disease Control and Prevention – Centro de Controle e Prevenção de Doenças), do governo federal dos EUA, publicou um blog chamado Preparedness 101: Zombie Apocalypse (http://blogs.cdc.gov/publichealthmatters/2011/05/preparedness-101-zombie-apocalypse/), que dá orientações fictícias à população sobre como se defender de um “apocalipse zumbi”, preparando kits de emergência e rotas de fuga. E em maio de 2012, poucos dias antes dos crimes acima mencionados, o governo da província canadense da Colúmbia Britânica divulgou um “manual de sobrevivência para o apocalipse zumbi”, acompanhado de vídeos ilustrativos (http://www.emergencyinfobc.gov.bc.ca/zombie-preparedness-week-are-you-ready.html). Um dos trechos avisa: “cuidado, tudo pode começar com um surto de gripe particularmente agressivo, então é bom ficar atento às notícias da TV”.

Os governos dos EUA e da província canadense apresentaram essas estranhas instruções uma forma de chamar a atenção da população e interessá-la em prevenção de desastres em geral, visto que as precauções sugeridas supostamente seriam úteis ao se lidar com desastres naturais como furacões, epidemias, terremotos e enchentes. Apesar da insistência dos internautas, não deram orientações sobre armas para combater os zumbis.

Agora parecem, porém, reconhecer que foram um pouco longe demais. Em 31 de maio, depois dos casos de canibalismo e ante a multiplicação de manifestações de internautas preocupados com a possibilidade de que o apocalipse estivesse se tornando realidade, o governo dos EUA teve de negar formalmente que isso fosse possível: “o CDC não conhece nenhum vírus ou condição capaz de reanimar os mortos (ou causar sintomas semelhantes a zumbis)”, escreveu o porta-voz da agência David Daigle em um e-mail para o site de blogs e notícias The Huffington Post.

Mas por que essa ameaça tão improvável fascina e motiva pessoas hoje? Nos anos 1950, provavelmente uma ideia como essa seria denunciada como uma brincadeira de mau gosto e de um ridículo atroz. Mesmo se o preparo para um apocalipse nuclear – hipótese hoje menos preocupante, mas que com certeza ainda é mais plausível do que uma epidemia de zumbis – era levado muito a sério, com treinamento nas escolas e empresas.

O que é isso, se não um sintoma de ansiedade para com o que parece ser a crescente fragilidade da ordem e da civilização ocidental, ameaçada por guerras, degradação ambiental, desemprego e concentração de renda? Não são esses zumbis expressão do medo da revolta das massas marginalizadas, minorias, estrangeiros e imigrantes ou simplesmente fracassados na busca ilusória da felicidade pelo consumo e da ascensão social?

Enfim, desse “precariado” visto como miserável, anárquico e irracional em contraste com fantasmas mais antigos e articulados, como o da revolta do proletariado, simbolizado pela “criatura” que se volta contra o “criador” (o monstro anônimo de Frankenstein, a robô Maria de Metropolis, os replicantes de Blade Runner…) e o da infiltração e doutrinação comunistas, representadas por incontáveis histórias de invasores alienígenas que tomam a forma de humanos ou assumem o controle de suas mentes, como em Invasion of the Body Snatchers (Vampiros de Almas, 1956).

Quando até governos e instituições oficiais cedem à tentação de misturar realidade e fantasia dessa maneira, será de se admirar que pobres psicopatas façam o mesmo, com a diferença de se colocarem no papel de “zumbis” que é implicitamente o seu? Ao mesmo tempo, uma sitiada classe média tradicional cultiva uma cultura de medo e se fascina por armas e sobrevivencialismo como se fosse possível enfrentar pela força bruta as muitas ameaças a seu modo de vida que não quer compreender, como o terrorismo e as crises financeiras.

Não se trata de afirmar, é claro, que a ficção determina comportamentos. Mas pode confirmar e alimentar obsessões dentro de um clima político que se nutre do medo e pode mais ainda impressionar mentes fragilizadas e dar uma forma mais definida a uma explosão de loucura. Sabe-se como certas manifestações de perturbações mentais são associadas a determinadas épocas e civilizações a ponto de serem consideradas “síndromes culturais’: o amok dos malaios (loucura que toma a forma de um ataque aleatório a facadas a pessoas na rua), o koro do sudeste asiático (ideia obsessiva de que o pênis está encolhendo e vai desaparecer), a “possessão” ou “obsessão” por espíritos ou demônios, comum entre brasileiros e outros latinos, os serial killers e spree killers característicos de certos países desenvolvidos do Ocidente.

Não seriam os casos patológicos citados no início deste texto um caso extremo em que esta civilização manifesta de forma demasiado literal os terrores que expressa em sua ficção? E não seria aconselhável, para combater sua multiplicação, ampliar o debate consciente sobre os problemas sociais e evitar alimentar a confusão do real com o imaginário?

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Publicado por Carta Capital el 5-6-2012.

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